Descrição Extrínseca

“Olha, esse tênis, Demétrio nunca teve um tênis de marca, entendeu? Demétrio... Teve… Minto pra você, né? Teve um All Star, foi o que eu comprei. Assim quando ele era adolescente. Aí, ele usou, usou, usou até surrar, entendeu? Aí ele foi pra São Paulo, achou esse Nike num brechó. São Paulo tem essas coisas de brechó, né? Você compra sapato semi-novo, entendeu? Com preço muito mais barato. Aí voltou de São Paulo com esse Nike. Entendeu? O que é que ele fez com o Nike? Pintou o Nike todo de verde. O cadarço até existia, e a palmilha também. O tênis tava em perfeitas condições, só que estava verde, porque ele pintou de verde. Só que a Letícia, depois que o Demétrio cometeu o suicídio, a Letícia ficou com problemas com cadarços. Eu não sei como isso funciona na cabeça de uma pessoa, porque eu nunca perguntei pra um psiquiatra. A Letícia tira cadarço das coisas até hoje. Qualquer coisa que ela vê de cadarço, ela tira. De bermuda, de sapato. Qualquer coisa que tenha cadarço, ela arranca fora. Entendeu? Eu tenho sapato aqui em casa, que eu tive que comprar cadarço. Depois que o Demétrio faleceu, ela fez isso. Não sei se ela teve um fadiga, um toque que ela gerou nela, não sei o que é. Aí ela arrancou esse cadarço. Ela arrancou de um sapato, de um lado só, e as palmilhas. [...] Não, ela arranca, não sei o que ela faz, porque fica jogado. Mas ela tira os cadarços. De bermuda, tudo. Cinto. Tudo que parece que é corda, que é coisa, ela arranca. Até na casa dela também. A Thaís falou que não aguenta mais. “Sogra”, as duas calças, o mesmo número, entendeu? “A Letícia arrancou as palmilhas e os cadarços dos meus tênis, tudo.” [...] É como se fosse um toque, alguma coisa que ela criou dentro dela, entendeu? Da fadiga nela, ela vai lá e arranca. [...] Ela passou... [Suspiro] Eu não gosto de falar muito dessas coisas, não. Ela passou depois que socorreu o Demétrio, tentou socorrer o Demétrio. Ela passou, se eu não me engano, quase um ano. Eu não sabia. Escovando o dente, escovando o dente, escovando o dente, ficava horas que ela escovava. Escovava, escovava, escovava. E eu falava assim, “Letícia, você vai machucar a sua gengiva.” Entendeu? Mas ela nunca falava. Eu vi ela escovando,
escovando. Chegou um dia que eu peguei e ela escovando tanto. Eu peguei e briguei com ela. Falei, “Ô minha filha. Fiz quase uma hora escovando o dente. Ela falou, “Mãe... Ela começou a chorar. Eu estou escovando o meu dente esse tempo todo pra ver se eu tiro o gosto do Demétrio na minha boca.” Entendeu? Porque as coisas que aconteciam em casa, eu não tava de casa. Eu estava na casa da minha mãe. Entendeu? Então quem socorreu o Demétrio foi ela, o Alex e o Lucas. E ela tentou fazer massagem cardíaca do Demétrio de respiração boca a boca. Entendeu? Então ela ficou, ela ficou um tempo. E eu não sabia que ela tinha feito isso. Ela escovava, escovava, escovava, escovava, escovava. Eu não sabia o que que era. Depois eu fui descobrir porque que ela tava escovando o dente direto. Aí depois começou a arrancar cadarço, cadarço, cadarço, as coisas. Aí ela arrancou o cadastro desse tênis ali. [...] Eu escolhi o tênis porque o tênis era... Eu escolhi o tênis porque o tênis era importante pro Demétrio, ele gostava desse tênis. [...] Entendeu? Eu queria ter mandado o tênis com o cadarço completo pra você, entendeu? Mas infelizmente a Letícia arrancou o cadarço [...] Sim, eu... Todo mundo tem algum tipo de... Esses dias eu tava falando, pensando na minha cabeça, sobre vícios. As pessoas criticam. Eu fiz um curso de redução de danos, no De Lei, com a Matuzza. E lá eu aprendi sobre a questão do vício. Não é errado você ter vício. Entendeu? É errado como você controla o seu vício, como você lida com o seu vício. Como as outras pessoas que querem controlar você controlar o seu vício. Entendeu? Então, a mesma coisa... Essa questão ainda, entendeu? Como a outra pessoa quer lidar com o toque que você tem. Todo mundo tem toque. Todo mundo tem vício. [...] De lidar. É uma forma de lidar, entendeu? Todo mundo tem um toque. Todo mundo tem um vício. Não existe. Não existe o ser humano perfeito. Todos nós temos algum tipo de frustração. alguma coisa escondida lá dentro, porque a gente lida com aquilo ali da forma que a gente acha melhor. Eu, por exemplo, vou falar uma coisa pra vocês aqui, que eu vou contar. Eu arranco esse cabelo daqui da nuca quando eu fico nervosa. Eu puxo meu cabelo da nuca. Uma vez eu fiquei careca assim, olha, daqui atrás. [...] Sim, as pessoas lidam com isso, entendeu? E a gente tem que falar, “Ah, não é normal?” É normal. Então, a gente faz parte da nossa mente, do nosso corpo. [...] Tênis preferido do Demétrio comprado no Brechó. Ele comprava no Brechó. As roupas do Demétrio eram todos do Brechó. Demétrio amava Brechó. Ele falava… [...] Às vezes, quando eu comprava um monte de roupa nova pra ele, ele falava, “Mãe, não compra roupa nova.” Eu falava “Demétrio, você té maluco? Você vai querer usar?” Ele fala “Não, mãe. A gente tem que entender sobre sustentabilidade.” Ele falava pra mim. Em consumo consciente em sustentabilidade. [...] Esse tênis veio de São Paulo, assim. E no pé dele. [...] Ah, esse tênis do Demétrio foi... Logo assim que ele voltou, que ele foi para São Paulo, ele veio em casa me visitar. Ele passou cinco anos em São Paulo. Foi em 2018, se eu não me engano. Ele foi para São Paulo, aí foi, passou um ano lá, aí eu perturbei, perturbei ele, pra ele vir no meu aniversário. Foi em março. Entendeu? [...] se eu não me engano, em 2019. Tá. Entendeu? Ele veio me visitar no meu aniversário, passou o aniversário comigo. Ele falou “Mãe, não tô nem em condições de vir, de coisa não, mas eu vou por causa do seu aniversário.” Ele apareceu aqui com esse tênis, uma bermuda toda de linho, de linho não, de velcro, eu não sei como que é aquele tecido,
de brechó também, todo estiloso. Ele montava os looks dele todo estiloso, tudo de brechó. Trindade, por exemplo, tem um, Trindade, que segue o estilo do Demétrio, tem vários meninos que seguem o estilo do Demétrio. [...] Inspiração, isso aí.” (Ivoni Campos, Acervos Transcestrais, 2024)