Documento
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MUTHA.AH.AD.AT.TC.2024107
Identificação e Características do Objeto
Acervo
Acervos Transcestrais
Número de Tombo
107
Número de Registro
MUTHA.AH.AD.AT.TC.2024.0107
Objeto
Vídeo Digital
Título
Eu odeio/amo ser Trans
Autoria
Maria Léo Araruna
Identidade e Subjetivação
Dimensões
478 x 850 pixels
Material
Digital
Origem
Casa da Joana, Altiplano Leste, Brasília/DF
Procedência
Brasília, DF
Observações
Não
Tipo de Aquisição
Doação
Pessoa ex-proprietária
Maria Léo Araruna
Data de Aquisição
janeiro 1, 2025
Estado de Conservação
Bom
Classificação Etária
Livre
Informações Contextuais
Descrição Extrínseca
“A Joana tava dando uma festinha, uma social, assim, na casa dela. Eu não me lembro como, mas eu e a Taya, a gente foi juntas. Eu fui dirigindo, eu tenho carro. E a Taya foi do meu lado. Nisso que a gente estava indo, a Taya falou pra mim que tinha tentado se matar de novo. Que ela tinha tomado muitos remédios. E, às vezes, a Taya falava sobre esse assunto, já de uma forma supérflua, descontraída, simples. Ela, às vezes, falava isso rindo. Ela falou isso rindo, assim, tipo, “Tentei me matar e não consegui.” E eu fiquei, tipo, muito brava, eu fiquei nervosa. E eu comecei a dar uma bronca nela, assim. Uma coisa bem mãe.
Comecei a dar uma bronca nela, tipo, “Não, você não pode fazer isso, você não pode fazer aquilo.” E ela ficou muito brava comigo porque eu comecei a dar essa bronca nela. E tipo assim ela falou que está fazendo tudo o possível, tudo que ela pode para melhorar a situação da saúde mental dela. Ela tá pagando o psiquiatra, ela tá pagando o psicólogo, ela tá tomando um monte de remédio. Ela tá fazendo todo o possível. E que ela não quer escutar ninguém dando sermão nela, pagando sapo pra ela e tal. E aí eu fiquei com muita raiva, com muita raiva. Porque eu tava preocupada com a situação dela. E eu não podia me meter direito, ela me afastava quando eu me metia de uma forma mais impositiva, mais incisiva. E ela me afastava, assim. E aí eu fiquei com muita raiva e eu não falei mais nada, eu só fiquei calada, engolindo a raiva. E eu ficava pensando, tipo, “Ah, então foda-se também. Então vai cagar, vai pra merda então. Eu não vou falar mais nada também. Foda-se. Faz o que você quiser da sua vida também.” Eu fiquei pensando assim, muito brava. E aí a gente chegou lá na casa da Joana. E a gente não ficou muito perto uma da outra, porque eu tava meio saco cheio. Tipo, “Velho, eu não acredito que eu escutei isso e eu não posso falar nada.” Era o meu pensamento. “Eu não acredito que ela vai me contar isso e ela não vai me dar a chance de expressar o que eu sinto, a minha opinião. Diante de uma situação tão drástica.” E aí a gente chegou na casa da Joana e aí ela ficou bebendo, eu fiquei comendo, tinha várias comidinhas, a gente ficou comendo. E aí teve uma hora que ela falou assim, “Maria Leo, senta aqui do meu lado.” Aí eu vi que ela já queria puxar, tipo assim, queria ficar de boas comigo. Aí eu sentei do lado dela. Aí ela, “Me fala o que você pensa.” Aí eu já vim armada, tipo assim, “Você vai querer saber mesmo o que eu penso, o que eu acho das coisas? Porque às vezes eu acho melhor ficar calada, porque eu acho que você não quer saber o que eu penso.” E aí ela falou, “Não, pode falar, pode falar.” E aí eu falei isso, tudo que eu estava pensando. De que eu não lembro muito bem as coisas que eu
falei, mas eu lembro que a gente teve uma conversa franca, ninguém brigou com ninguém, ela super me escutou. Eu falei que ficava preocupada com ela, falei que eu não podia ficar normal diante dela ter contado isso pra mim. É... Eu não queria que isso se repetisse e eu queria que a gente encontrasse modos de que isso não se repetisse mais. E aí ela me escutou e tudo, ela entendeu, a gente foi conversando e a gente começou a... E aí eu perguntei pra ela, eu não sei se eu perguntei agora, a memória, às vezes, engana a gente. Deixa eu pensar aqui. Eu sei que chegou um momento em que ela admitiu pra mim, a gente começou a falar um pouco das causas, do que levava ela até essa depressão profunda, até essa tristeza, a ter essa vontade de se matar, a ter essa voz que falava dentro da cabeça dela, que ela tinha que morrer. E aí eu lembro que ela chegou à conclusão de que ser trans, ela odiava ser trans, que era muito ruim ser trans. Porque é justamente por ser trans que a cabeça dela tá fodida hoje. E ela falou que não se arrepende da transição dela, não era nada a ver com isso. Ela disse que tentou muitas vezes ser homem, mas não conseguiu. Então ela... Mas ela sabia que era por causa dessa falta de afeto, era por causa dessa segregação, dessa marginalização, dessa dificuldade de ser aceita na sociedade, pelas pessoas que ela gostava, que ela se interessava. E aí eu conversei com ela e tentei mostrar pra ela assim... Que ser trans também é algo muito especial. Porque é justamente por a gente ser trans que a gente é doida, que a gente fala do jeito que a gente fala, que a gente pensa as coisas que a gente pensa, e de como é libertador também, não ter que seguir a forma como as pessoas cis genera são. De como é... É graças a ser trans também que a gente consegue ver o mundo de outras formas, de que a gente tem uma sensação boa com o nosso próprio corpo. Muitas vezes é confortante tá ali, e que a gente não pode abandonar
a nossa travecona interior e querer tentar ser mulher, passável, e sempre lembrar dessa nossa travecona interior, desse lugar absurdo, chocante, monstruoso, louco, que a gente carrega dentro da gente também, e de que isso é bonito. E aí no final ela concluiu, e ela falou isso, eu lembro muito bem, de que ela concluiu de que “Eu realmente não odeio ser trans, na verdade eu amo ser trans. O que eu odeio é a transfobia. Eu odeio a transfobia.” Ela falou isso. E aí ficou muito marcado nisso. Foi nesse dia, que a gente tava conversando ali, todo mundo dançando, cantando, em volta, comendo, e ninguém tava prestando atenção na gente. Era uma coisa bem íntima ali, no meio dessa festa toda. Eu e ela. E essa conversa foi bem legal, na verdade.” (Maria Léo Araruna, Acervos Transcestrais, 2024)
Período
1º semestre de 2023
Referências Bibliográficas
Não
Exposições
Não
Publicações
Redes Sociais (Stories; Instagram) Maria Léo Araruna
Restauro
Não
Pesquisas
Pesquisa realizada pelo Museu Transgênero de História e Arte - Mutha para a construção das coleções pertencentes ao eixo temático Acervos Transcestrais, contemplada por meio do edital Funarte Retomada Ações Continuadas - Espaços Artísticos 2023.
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Observações
Não
Registrado por
Beatriz Falleiros | Ian Habib | Mayara Lacal
Data de Registro
fevereiro 20, 2025